A Nobreza do Samba Paulista no Centenário da Semana de Arte Moderna

Diney Isidoro
7 min readMar 28, 2022

“Cérebros transtornados por psicoses”
Monteiro Lobato

Assim afirmou em nota pública, o Escritor Monteiro Lobato ao conhecer os trabalhos de Anita Malfatti em 1917, essas influências psíquicas evidenciadas por Lobato que viriam revolucionar a arte, também movimentaram por décadas as estruturas da música brasileira, inspirando diversos movimentos como a Bossa Nova e o Tropicalismo.

Curiosamente em 1922, data no qual se acontece a semana de arte moderna em São Paulo, um dos ritmos mais brasileiros, ainda era um desconhecido em todo país e inócuo entre a aristocracia paulistana, era um subproduto que desembarcava silenciosamente e devagar nas plataformas do antigo Largo da Banana.

Um dos grandes portos de chegada de mercadorias vindouras do Interior Paulista e que na mesma medida trazia cada vez mais, famílias em busca de uma nova realidade na Capital, dando ainda mais ênfase ao processo desencadeado nos anos 30 por intermédio do “Ciclo do café” eis os primórdios do êxodo rural paulista.

Foto: Largo da Banana — Acervo do Estado de São Paulo

Enquanto para muitos, eram apenas pessoas que vinham buscar a sorte, para eles era muito mais, pois nas suas poucas vestes que traziam e em suas pequenas malas, eles carregavam o mundo. E traziam consigo uma espécie rara, um diamante bruto, uma semente plantada por seus antecessores escravos e que foi polarizada nos casebres e resquícios de um Brasil passado. Esse diamante bruto ganhou com o tempo diversas alcunhas entre elas a de: Batuque, Jongo, Samba de Bumbo, Samba de Pirapora, Tambú entre outros… Mas com o passar do tempo,a sua identidade ficou mais conhecida como “Samba Rural Paulista”, a sua origem vem anterior à reunião dos jovens revolucionários.

O Samba Rural é nascido em 1908 por intermédio também de reuniões, mas neste caso, da igreja católica, na cidade de Pirapora do Bom Jesus (SP). O Berço deste samba rural acontecia um pouco afastado da Santa Igreja, os Padres destinavam dois barracões para que os negros romeiros, pudessem descansar e se preparar para os festejos do dia posterior, mas na verdade, acontecia um dos maiores encontros de manifestações negras livres naqueles dois espaços, se organizava naquele momento uma das grandes estruturas ritmicas que colocaria o desconhecido samba rural paulista futuramente em destaque.

Enquanto silenciosamente no Bairro da Barra Funda começava a aportar estas sementes vinda através dos sacolejos e batidas dos dormentes das linhas dos trens, na região central da cidade, as teias silenciosas do universo tecem a amizade entre Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro, Harberg Brecheret, Tarsila do Amaral entre outros…

Processo este que dava continuidade a um movimento inominável desencadeado em meados de 1917.

Os reflexos da semana de arte moderna teriam efeitos avassaladores para os padrões seguidos em nosso país:

“Seria uma semana de escândalos literários e artísticos, de meter os estribos na barriga da burguesiazinha paulista”.
Frase de Di Cavalcanti para a imprensa da época.

Pierret de Di Cavalcanti — 1922

A severidade no qual a crítica teceu suas palavras sobre o novo movimento revolucionário, gerou repulsa e revolta nos grandes círculos sociais e aristocráticos da época, que os chamaram de “Subversores da arte”, porém pouco influenciou a camada pobre que começava através dos batuques a construir a sua identidade dentro desta metrópole em expansão.

Foto: Mapa Urbanizado — Acervo do Estado de São Paulo

Era o Samba Rural Paulista começando a desencadear e aos poucos ia ganhando mais força através do Grupo Carnavalesco Barra Funda, criado por Dionísio Barbosa em 1914, era o corso, o cordão, o folguedos, era o carnaval da camada mais pobre paulistana contra os carnavais de salões e corsos dos barões cafeeiros.

Um movimento livre de expressão que sofria com a repreensão da polícia mas que resistiam de forma valente, um quilombo de resistência cultural, onde cantar e expressar livremente sua alegria, era algo natural.

Essa semente de seu Dionísio, posteriormente se transformou no Cordão Camisa Verde e Branco que também viu de sua janela para o mundo, surgir outros cordões e deste mesmo fruto, nasceu no negro bairro da Liberdade, a Escola de Samba Lavapés (1937) da Senhora Deolinda madre, mais conhecida como Madrinha Eunice, escola de Samba esta que tinha a negritude como essência e os cânticos de suas matrizes mantidos em suas origens.

No Livro “O Negro e o garimpo em Minas Gerais (Editora José Olímpio), de Aires da Mata Machado Filho, foram registrados dezenas de cânticos de escravos negros que eram entoados no interior de Minas Gerais e que foram datados de 1928 e registrados na voz de Clementina de Jesus,Tia Doca e Geraldo Filme no incrível álbum “Canto dos Escravos”.

Eram cânticos de trabalho antigos, vindouros das origens escravocratas de um brasil que em 1922 completava o centenário de sua independência, mas ainda sofria com os resquícios de uma falsa liberdade que posteriormente foi cantada a plenos pulmões em 1988, por oportunidade do Centenário da Abolição da Escravatura.

foto mapa urbanizado 1930 — Acervo do Estado de São Paulo

Observem que os elementos rítmicos deste álbum, anos depois se encontravam presentes nos seios dos primeiros Cordões Carnavalescos e Escolas de Samba, se misturando com aquelas sementes desembarcadas no patriarcal Largo da Banana e espalhadas pela expansiva cidade de São Paulo.

Décadas depois, ficou latente que o empenho de Dionísio e Madrinha Eunice, começava a despontar e as primeiras sementes explícitas do samba paulista e suas personalidades iriam se transformar em figuras importantes neste movimento: Alberto Alves da Silva (Seu Nenê de Vila Matilde), Antônio Messias de Campos (Toniquinho Batuqueiro), Carlos Alberto Caetano (Seu Carlão do Peruche), Cacilda Costa (Dona Sinhá), Geraldo Filme de Souza (Geraldo Filme), Henrique Felipe da Costa, (Henricão), Inocêncio Tobias (Inocêncio Mulata), José Francisco da Silva (Zeca da Casa Verde), Octávio da Silva (Talismã), Zézinho de Nazareth (Zezinho do Banjo) e tantos outros…

Os revolucionários da Semana de 22 jamais poderiam imaginar que sua atitude altiva se tornaria de forma corriqueira uma ferramenta explorada bravamente por um dos ritmos mais ligados ao povo.

Uma das provas desta influência está na composição de Octávio da Silva, mais conhecido como Talismã, em 1971 ele escreveu a canção: “Sonho Colorido de um Pintor” ao lado de Benedito N. Lobo para a Escola de Samba Camisa Verde e Branco e que em 1972 fora regravada pelo tropicalista Tom Zé, ele que era morador do Bairro da Barra Funda aprendeu a melodia na janela de sua casa e assim se apaixonou pelo que ouviu.

Zeca da Casa Verde se rende as belas obras e assim como as pinturas de Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral, ele compõe obras que rompem a estética padrão da época e cria uma estética própria que enaltece as belezas e riquezas naturais com uma visão mais aprofundada de nossas mazelas mas ao invés de tristeza ele contrasta com sutileza e alegria.

Toniquinho Batuqueiro assim como o Maestro Heitor Villa-Lobos encantaram pelas ornadas melodias naturais de seu povo, em cada construção melódica, ambos exploraram suas raízes, as raízes de seu povo e deixaram registrados em suas obras, as essências que forjam a estrutura da musicalidade brasileira, cada um dentro de sua especialidade fora maestro na condução de sua vida musical.

Adoniran Barbosa é outro grande artista que rompe com as matrizes da língua portuguesa e se aproxima da visão revolucionária de Oswald de Andrade em se expressar com total liberdade formal e isso fica evidenciado em cada composição.

19 de novembro, Plínio Marcos e Adoniran Barbosa. Fonte: Site Oficial de Plínio Marcos

E diversos outros sambistas se espelham neste importante movimento.

Enquanto a nobre Patrícia Rehder Galvão, a eterna Pagu, em 1952, transforma a vida de um dos grandes apoiadores deste futuro movimento através de suas peças de teatro na cidade de Santos (SP), um visionário que refletia nas suas visões e ideias, tudo que se nutria no movimento antropofágico.

Ao mesmo tempo que o samba rural paulista começava a mudar seu rumo, a se transformar em Samba Paulista e nesta fase desembarca em São Paulo o jovem ator Plínio Marcos de Barros, trazendo na bagagem a amizade com a também jovem Pagu e por consequência conhece os já famosos Mário e Oswald de Andrade.

E através das artes, ele conhece a boêmia e a boêmia o coloca defronte ao bambas, e aos bambas, Plínio apresenta o Teatro, estes sambistas da nobre e revolucionária Paulicéia Desvairada se inserem nas peças: Balbina de Iansã, Jesus Homem e Plínio Marcos: Em Prosa e Samba — Nas Quebrada do Mundaréu..

Neste momento, este jovem jornalista que aqui descreve, analisa que São Paulo teve no mesmo caminho dois movimentos antropofágicos, dois fenômenos culturais, um erudito e consagrado e o outro espelhado no primeiro porém mais popular., mais voltado ao povo, assim como estes revolucionários oriundos do povo gostariam que fosse e assim foi.

Eis aí a Nobreza do Samba Paulista celebrada neste Centenário da Semana de Arte Moderna.

Dionisio Barbosa
Compositor Talismã
Madrinha Eunice

Na foto: Dionisio Barbosa, Talismã e M. Eunice

Obrigado pela leitura!

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Diney Isidoro

Colunista,Escritor,Jornalista,Pesquisador, Sambista e um bocado de coisas na vida.