A sagração dos Afoxés no Carnaval Paulistano

Diney Isidoro
5 min readNov 12, 2021

Vestes brancas, cabelos coloridos, tranças, miçangas, jeitos e trejeitos, entre agogôs, alabês (músicos), atabaques e xequerês, um enorme cortejo se forma.
Sagrado, singelo, místico é assim que os afoxés unem o orí a Orum (uma dimensão paralela a nossa no candomblé), trazendo proteção e paz a todos, sejam eles adeptos às religiões de matrizes africanas ou não, pois o rumbê (respeito) prevalece dentro de cada terreiro, dentro de cada okan (Coração).

Poema livre escrito por Diney Isidoro.

Para entendermos a chegada dos afoxés no Carnaval Paulistano, temos que navegar em mares distantes, uma estrada imaginária de 1.963,8 km que distancia a Capital Baiana - Salvador a São Paulo. Esta distância se torna ínfima ao falarmos da representatividade dos afoxés baianos para os nossos festejos, neste solo sagrado que aportou os primeiros indícios da colônia africana no Brasil, foi o berço para o surgimento dos primeiros afoxés e batuques, já que os mesmos desembarcaram através dos navios negreiros que em nosso solo adentravam.
Destes movimentos em cortejo para celebrar a preservação da herança negra africana, nasce os afoxés em 1922 e dentre os diversos afoxés, temos em destaque: os Filhos de Gandhy, fundado no Porto de Salvador em 1949, o Ilê Aiyê, fundado no bairro do Curuzu em 1974, o Badauê em 1978 e o Olodum em 1979 ( sendo uma banda percussiva).
Sei que muitos destes nomes são de conhecimento de todos, mas para captar a importância destes movimentos livres, nos exige pensarmos o porquê de suas reais existências?
Devemos compreender que os afoxés não são apenas canais de liberdade de expressão, mas também toda singularidade de um povo, através do seu canto e de sua fé. Uma forma plena de integração de povos sem distinções, celebrando não apenas a sua matriz religiosa, mas sim de todas e quaisquer formas de espiritualidade.
Apesar de que todas as vestimentas em torno dos afoxés simbolizam a africanidade, nem todos os filhos são pertencentes à mesma, formando um canal livre de aceitação e respeito por outras religiões.
Claro que a ligação com as religiões fez com que expandisse, evoluísse, propagasse a essência africana.
Com o passar do tempo, outras localidades fundaram os seus próprios terreiros para que pudesse expandir e dar continuidade a esta oratória, mas engana-se quem pensa que com essa expansão, a mentalidade perante ao sagrado se modificou.
Como um gigante Baobá, as raízes são mais fortes!

Porém em nossos dicionários, os Afoxés são definidos como um: grupo negro semirreligioso de brincantes que desfila, no carnaval baiano, não raramente como obrigação ('preceito') de uma casa de candomblé.

Observando atentamente, percebemos que esta definição se torna simplista, perto da singularidade dos afoxés, seja ela espiritualmente ou pela forma empírica no qual os ensinamentos foram deixados por nossos ancestrais.
O trecho em questão não traduz corretamente a conexão espiritual que este ritual tem com o festejo de momo, pois seja em Salvador ou em São Paulo, a maneira com que se constrói o cortejo vai além da obviedade do conteúdo nas páginas de qualquer dicionário.
A construção se sobrepõe a utilização de vestes brancas e alguns berloques, existe uma ritualística por trás de todos os cortejos.
É a sobrenaturalidade!
A forma oculta e suprema que rege tudo que é intangível, um fio, uma camada transparente de baixa percepção.
Toda esta prática se faz florescer através dos Babalorixás e Yalorixás para que possam conduzir os seus filhos para os preparativos deste ritual,simbologia enraizada em suas peles, continuidade da semente ancestral, como se cada um fosse um baobá e germinasse o solo para que os próximos possam seguir a ritualística.
Este ensinamento compartilhado pelos ancestrais, inseriu algumas práticas necessárias para abrir os festejos de momo, um deles é a obrigatoriedade da entrega de um padê (rito ou cerimônia das religiões africanas, no qual é ofertado alimentos e bebidas as divindades) para Exú pedindo aos mesmo que permita a abertura dos festejos, espantando a malquerença.
Mas quem é Exú?
Exú não é o diabo ou o mal como pregam!
Exú é um dos maiores orixás ou divindades das raízes africanas, uma espécie de mensageiro entre nós humanos e o universo sobrenatural. Exú é quem rege e protege as ruas com sua falange e através dele que nos conectamos com o mundo externo, ele é o guardião da comunicação.
Com a licença de Exú, segue-se a reverência a Babalotim, um boneco de pano que é bordado no estandarte de cada afoxé e representa São Cosme e São Damião, protetor das crianças, cirurgiões,farmacêuticos,médicos e que remetem à alegria.
E como não ter alegria em uma festa como o Carnaval?
Após este ritual, o estandarte é levado para o cortejo através do Rei e da Rainha do afoxé, que muitas das vezes são crianças, nos transportando assim a ligação direta com Cosme e Damião, seguida de mulheres vestidas de Baianas e filhos com trajes africanos.
O canto entoado é uma mistura das línguas africanas com a língua portuguesa no qual através da oralidade é entoado a plenos pulmões por seus filhos e aficcionados, o canto somado ao ritmo executado pelos já citados acima, os alabês, misturam os batuques com a vibração dos agogôs,caxixi, xequerês entre outros...criando assim um ritmo conhecido como ijexá!
Assim com muito axé, ornados de folhas e águas de cheiro eles banham a avenida pedindo proteção a todos os foliões e brincantes, não somente aqueles que estão no Sambódromo do Anhembi mas sim de todos os festejos espalhados pela cidade.
Hoje em São Paulo, temos o Afoxé Ilê Omo Dada, o mais antigo de São Paulo e que substituiu o Bloco Sovaco de Cobra na abertura de nosso carnaval nos anos 80, O Afoxé Iyá Ominibu, o Afoxé Oba inã entre outros espalhados por nosso estado.

Integrantes do Afoxé Ilê Omo Dada no Sambódromo (acervo digital)

Então agora você conhecendo melhor a importância dos afoxés eu os convido para a reflexão!
Será que é correto tentar cercear ou ocultar um ritual como o dos afoxés?
No meu ponto de vista, apenas em pensar nesta prática , já cometemos um crime de atemporalidade.
Esta tentativa não é apenas um ato contra a história negra e sim contra toda a ancestralidade presente muito antes de nossa forma física.
O afoxé é simplesmente um ritual de purificação somado a sagração aos deuses através da oralidade, nos remete a ancestralidade africana ao início de nossos tempos e nos coloca em sintonia com a nossa própria história, seja através das cantigas ecoadas pelas senzalas ou pelos rituais de terreiros africanos e que levamos ao palco maior do Carnaval paulistano.
Agora deixo a cada leitor o pedido de compartilhamento e reflexão, somos filhos desta oratória, somos a continuidade e não devemos deixar este legado desaparecer.

Axé

*Este texto não vem para recriminar ou rechaçar ninguém, ele vem para inspirar e dividir um pouco sobre quem mantém o equilíbrio nos festejos de momo.

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Diney Isidoro

Colunista,Escritor,Jornalista,Pesquisador, Sambista e um bocado de coisas na vida.