Documento Thereza Santos — A Malunga Guerreira (Capitulo dois)

Diney Isidoro
9 min readApr 14, 2021

“Para a sociedade brasileira e para comunidade negra Brasileira,Thereza Santos foi uma Pré Marielle — (Marielle Franco)”

Bailarino e Coreógrafo Ismael Ivo — (1955–2021)

A magia das luzes de neon, fizeram com que a jovem Jaci buscasse esperança dentro de sua essência, como uma flor, ela necessitava que Thereza viesse a desabrochar, viesse à tona.
Mas como?
Qual caminho seguir para que ela se liberte e coloque sua voz e seu talento latente para o mundo?
Qual a melhor maneira para enxergar esta jovem mulher negra, que deseja não apenas resistir e sim existir?
Depois de muitos problemas em sua família e principalmente com sua mãe, ela vai a luta e consegue entrar na Faculdade Nacional de Filosofia, momento de alegria?
Não!
Ao chegar em casa e contar para os seus pais, sua mãe se irrita e não aceita.
Afinal este não era o destino que ela desenhava para sua filha.
Porém seu Pai se enche de orgulho e ressalta a alegria e a oportunidade de um membro desta imensa família se tornar um diplomado.
Neste momento ela sente o amparo de seu porto seguro e isto lhe traz confiança e esta atitude inflama Jaci, que mergulha de vez na Faculdade.
Mesmo que ainda perdida entre panfletos e corredores, ela se encontra na União Nacional Estudantil (UNE) e no Centro Popular de Cultura (CPC).
Neste novo cenário, ela se conecta e reencontra velhos amigos: Ari Toledo,Carlos Vereza, Carlos Fontoura, Ferreira Gullar, Haroldinho de Oliveira, João das Neves, Jorge Coutinho, Oduvaldo Viana e Tereza Aragão.
Rapidamente o entrosamento desta turma começa a surtir efeito e engajados eles começam a fazer Teatro em terminais de ônibus ou na Central do Brasil na hora do Rush, envolto de caixotes de frutas e legumes como cenários,ali eles transbordam a pura arte.
E claro o bom público desperta a atenção da repressão, que vinha sempre fechar as cortinas a cada novo espetáculo.
Mas a cada nova cena, o personagem Thereza Santos ganhava corpo, ganhava alma e Jaci se tornava espectadora de uma nova história, mesmo que fisicamente dois corpos não ocupam o mesmo espaço, naquele momento Thereza Santos começava a existir.
E esta existência faz com que Thereza entre no Partido Comunista e abandone de vez boa parte de suas histórias do passado, de sua juventude.
Engajada ela começa a lutar em defesa das questões sociais e raciais e mesmo não sendo foco do Partido, ela compra a briga e vai à luta.
Sua postura muitas vezes é desacreditada e desaconselhada por membros do CPC, essas bandeiras eram novidades para eles. Porém sabiamente ela entende que por ser uma mulher negra ao lado de dois jovens negros pobres (Haroldinho e Jorge Coutinho), a intenção real do partido era mostrar ao mundo que respeitava todas as classes sociais ou melhor que o partido aceitava a inclusão da Classe mais baixa carioca.
A realidade era mostrar esta imagem e omitir na hora h, a participação destes membros.
E Thereza que sempre fora ávida, percebeu e logo se rebelou!
Apesar de tudo, ela e os amigos ajudaram a arrecadar uma boa grana para o partido construir um belo Teatro.
O Teatro Opinião!
Mas o Castelo de cartas começou a ruir com as chamas do Teatro no dia 31 de Março de 1964, em meio a confusão, ela conseguiu fugir pelos dutos da Lavanderia nos fundos do prédio e ao chegar na frente do Teatro, ela chorava ao recordar o quanto lutou junto aos amigos para que aquele Teatro na sede da UNE viesse a existir.
Neste momento ela se vê sem chão e dias depois, ela soube do tiro que o amigo Haroldinho levou e a bala que ele carregou até o seu leito de morte em 2003, guardado ao lado do seu coração.
Naquele momento, ela refletiu sobre como ela não cabia mais nos processos do CPC, mas continuaria ligada ao Partido, afinal de contas fora aprendendo a lidar com a não aceitação dos brancos que ela ganhou força.

Morro da Mangueira em 1969 — Acervo digital

Um menino da Mangueira
Recebeu pelo natal
Um pandeiro e uma cuíca
Meninos da Mangueira — Composição de Rildo Hora e Sérgio Cabral

Decidida, ela comunicou ao partido que iria abrir uma frente de trabalho dentro de uma escola de samba, ousada ela peitou a contradição e aportou na Estação Primeira de Mangueira.
Influenciada por Cartola, Dona Zica e Nelson Cavaquinho, pessoas que a receberam de braços abertos, Thereza apresentou um projeto de alfabetização ao então Presidente Juvenal Lopes que abriu os caminhos para que ela pudesse ensinar Português e Matemática como reforço escolar e sua amiga Liana da Escola de Belas artes fora para ensinar pintura, porém meses depois ela desistiu e Thereza valente continuou.
Criou uma biblioteca que rapidamente ficou forrada de livros e recebeu o apoio de Dona Neuma e suas filhas: Chininha, Sissi e Guezinha.
Admirada e engajada,logo Thereza foi convidada a presidir o Departamento Cultural da escola, neste momento ela se sentia parte representativa na escola e logo abriu um Teatro infantil para comunidade e trouxe amigos da Classe média para conhecer os trabalhos: Jacó Kibermam,Marcelo Cerqueira entre outros…
Com este sentimento libertário e representativo, ela conversou com Dona Neuma e juntas elas criaram um Departamento Feminino com quinze diretoras e trinta e cinco recepcionistas.
Assim a Mangueira passou a ser a primeira Escola de Samba a ter uma Diretoria Feminina no país em 1968!
Porém o contraste da pobreza financeira da Estação primeira era os bons frutos gerados em cada parte da comunidade, logo elas decidiram fincar as bases para o Projeto Mangueira do Amanhã, ensaiando e ensinando 200 jovens da comunidade que foram o reflexo do desfile da escola em 1968 no qual ela se tornou bicampeã do Carnaval Carioca.
Missão cumprida?
Não!
Faltava rasgar a fantasia e cair no samba e logo ela aprende a sambar com as passistas e desfila como par do Artista Plástico Heitor Oiticica em 1969.
Ela estava preenchida, completa de amor, carinho e respeito.
Mas neste imenso jardim em verde e rosa ela encontra um belo espinho e é obrigada a se afastar, prevendo o mal que estava por vir e deixando para trás as amizades em cada traço e viela do morro: Cartola, Dona Neuma, Dona Zica, Jair, Juvenal Lopes, Masur, Rubem Confete, Tinguinha e as centenas de crianças que enxergavam a esperança através do olhar brilhante de Thereza.
Triste, ela volta ao trabalho no Partido, neste momento Thereza começa a organizar eventos na Estudantina,a fim de ajudar a colaborar com a causa, juntando pobres e a nata carioca em eventos repleto de celebridades.
Eis que em uma apresentação do Ator Paulo Autran, os policiais da polícia política da marinha (Cenimar) invadem o local armado e dando voz de prisão a ela, mas os amigos Cláudio Amaral e Sônia Brandão de Brandão interpelam e a ajudam a fugir do local, porém dias depois ela foi presa.
Neste momento se inicia a tortura psicológica,a Cenimar a leva durante dez dias em regime domiciliar para a prisão, onde iam busca-la em sua casa direto para o batalhão e a enchiam de perguntas e ficavam sem respostas.
Mas no décimo primeiro dia estoura uma enorme revolta em Angra dos Reis e ninguém foi buscá-la, Prato feito, resultado: ela fugiu para São Paulo.

São Paulo visto de cima em 1970 — Acervo Digital

São Paulo, Menino Grande
Cresceu não pode mais parar
São Paulo Menino Grande — Geraldo Filme

Horas de viagem a fio, ela cruza a mata das serras das araras em busca do desconhecido.
Os amigos Carlos Alberto, Fernando Bezerra e Ivan Setta, atores e amigos do Rio de Janeiro, aguardam a sua chegada e a hospedam na cidade, logo ela conseguem um emprego graças a sua experiência no Teatro amador, porém uma árdua missão vinha a frente: substituir Ruth de Souza na peça O Milagre de Anne Sullivan, que pedreira!
Da malandragem do Teatro de rua para substituir uma das grandes atrizes negras da atualidade, bingo!
Ela tira de letra e isso a qualifica para fazer a novela Nino,o Italianinho ao lado de Araci Balabanian, Denis Carvalho, Juca de Oliveira e o jovem Toni Ramos entre outros.
Pronto, agora ela tinha condições de se manter nesta cidade em metamorfose.
Não demorou muito e ela decide voltar ao Teatro Popular ao lado de Joacir Castro e Carlos Alberto, ambos também fugitivos da repressão que assolava a classe artística na época e rapidamente produzem a peça A Incelença de Luiz Marinho e partiram para encontro do povo.
Porém a fome por sobreviver e propagar a cultura era maior, e ela junta a experiência de Joacir Castro com a cultura nordestina, a sapiência e habilidade de Aristides Barbosa, Previs Lopes e Eduardo de Oliveira e Oliveira e começam a desestruturar a desigualdade da sociedade branca paulistana trazendo à tona a comunidade negra.
Mas qual a maneira de trazer o negro a tona?
Não existia porta melhor do que o Teatro e assim criaram a peça “E agora falamos nós”, este fora o momento ideal para mudar os rumos da comunidade e eles contaram com a sorte de serem avaliados por um gestor que não tinha tantas regras assim, mas foram obrigados a ir para Brasília liberar o texto final.
Thereza não pensou duas vezes,foi escondida em um pau de arara e voltou com o troféu nas mãos: estava liberado!
A estrutura ficou por conta do Eduardo, que inclusive trouxe 35 meninos de um coro de jovens da periferia de São Paulo para participar da peça e o texto ficou por conta dos demais participantes.
Mas e o espaço?
Eduardo tinha bons contatos e convenceu Pietro Maria Bardi a ceder o auditório do Museu de Arte de São Paulo e um slide 6x8 metros para que eles fizessem a peça.
Eduardo conseguiu também criar um programa da peça e alguns trajes, depois de muitos ensaios no Teatro da Companhia Municipal de Transporte Coletivo (CMTC) e sem grana no bolso, mas com muita coragem eles venceram.
A peça foi encenada no museu com casa cheia e foi um sucesso!
Ali a conquista fora por eles, por Solano Trindade, por Dalmo Ferreira e seu Teatro experimental, a vitória foi da comunidade negra.
A peça seguiu em apresentações em escolas públicas, no TUCA, na Quadra da Escola de Samba Mocidade Alegre e em diversos estados.
Com o sucesso, eles decidiram criar o Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN) e ela neste momento permaneceu dividindo os palcos do Teatro e as novelas na Rede Tupi..
Com o destaque do seu trabalho ela fez as novelas: A Fábrica,Signo da Esperança e Mulheres de Areia na extinta Tv Tupi ao lado de artista como Adoniran Barbosa, Antônio Fagundes, Carlos Zara, Eva Wilma, Gianfrancesco Guarnieri, Renato Correia e Castro entre outros…
Com o favorecimento deste novo cenário, ela consegue uma moradia fixa no Bairro de Santa Cecilia, mas o destaque a nível nacional faz com que o partido descobrisse seu endereço e mandasse diversos militantes para sua casa.
Thereza fica entre a cruz e a espada, se acaso negasse receber estes exilados,ela estava exposta e poderia ser presa, ela pensa e reflete e acaba decidindo em dar guarida.
Com o passar do tempo, e com a sensação do cerco a se apertar, ela decide conversar com a amiga, a autora Ivani Ribeiro, a novela naquele momento era recorde de audiência, porém ela clama por sua vida e Ivani pela amizade entre as duas ela escreve uma cena no qual sua personagem briga com seu esposo interpretado por Adoniran Barbosa e ela assim a personagem sai da praia e retorna a cidade, Thereza Santos sai da novela.
De volta a São Paulo ela teria dez dias antes do fim da novela para sair da cidade, a repressão já estava a monitorando a fim de prendê-la e para evitar escândalos aguardavam silenciosamente o fim da novela para executar a prisão.
Disfarçadamente ela foi se desfazendo de alguns bens em seu imóvel e informou a Antonio Ivan Silva, Leninho de Abaluaie, Milton Barbosa,Odacir de Mattos,Rafael Pinto e Teresinha Silva que estava saindo do país, deixou um envelope para um amigo anônimo no qual continha uma carta que informava que se em 5 dias ela não aparecesse, a casa e os imóveis ficariam para ele.
E a cada sirene em sua janela, o medo vinha bater em sua porta…
Assim repleta de medo, ela se recorda de um antigo amigo e solicita ajuda a Flávio Proença, responsável pelo Partido Africano pela independência da Guiné Bissau e Cabo Verde (PAIGC) e ele abre os caminhos.
Em menos de 24 horas, após a gravação do último capítulo da novela, ela embarca em direção a Dacar, Senegal.
Os tambores que ela ouvia em sua infância que permeiam as madrugadas cariocas, se transformam em um canto.
O canto que sai da alma de quem acredita que enfim vai conhecer o significado da palavra: Liberdade!

Na próxima Quarta feira, o último Capítulo,o Berço da Humanidade congraça a Malunga Guerreira e o mundo do samba reconhece a sua realeza.

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Diney Isidoro

Colunista,Escritor,Jornalista,Pesquisador, Sambista e um bocado de coisas na vida.