Documento Thereza Santos — A Malunga Guerreira (Capítulo final)

Diney Isidoro
9 min readApr 21, 2021

“Quando perguntarem sobre o que eu fiz, vá e diga ao mundo que eu tentei, só isso”. (Ismael Ivo)

O Sol desperta entre as nuvens espantando o sereno que cai sobre a madrugada, logo a aeronave se prepara para pousar em solo Africano, solo este que reúne toda a ancestralidade e batuques do mundo.
No aeroporto, ansiosamente a Malunga é aguardada pelo amigo Flávio Proença, responsável pelo (PAIGC).
Emocionada e se sentindo livre, ela encontra o amigo que a leva para a Casa do Partido.
Depois de dias de tensão vivida no Brasil, Thereza encontrava a tranquilidade e a paz perdida,logo todas as lembranças de família e o que vivera no Brasil se transforma em saudade.
Saudade esta que através dos sonhos a levam para a infância,para o Morro de Santa Tereza, para os braços da família, para o seu seio, seu lar.
Mas esta paz termina rapidamente, pois no meio da madrugada, este seu sono fora interrompido de forma abrupta pelo então amigo Flávio que tenta usar da sua fragilidade para ceder aos seus prazeres.
Thereza reage e se põem a bradar, acordando toda casa, na manhã seguinte, ela informa q a direção do partido e alguns se opõem a decisão dela, mas não sabiam quem era Thereza Santos.
Sua atitude surtiu efeito e dois dias depois, o braço direito do partido, Camarada Malangino informa que vai levá-la a um hotel,uma maneira de abrandar a situação!

Popular celebrando com a Bandeira do Partido em

Mesmo com esta situação resolvida, a Embaixada Brasileira,continuava a sua empreitada na intenção de repatriar,missão que não surtiu efeito.
O Partido fica a par da movimentação e rapidamente a leva para trabalhar na Escola Terenga construída pela Unicef com um total de 500 crianças, na cidade de Casamansa (459 km de Dacar).
Rapidamente ela se conecta ao novo país e começa a lecionar sobre arte,cultura,dança e Teatro para jovens e crianças. Mesmo com a falta de condições alimentícias,sanitárias e de iluminação que só durava três horas por dia, ela resistiu.
Ao lado de grandes pessoas da comunidade como Filinto Barros, Diretor da Escola e Noemia, sua esposa, Fátima e Iva Cabral, irmã e filha de Amílcar Cabral, um dos líderes do PAICG, Thereza começa a colocar as suas ideologias a frente, mesmo com a dificuldade em dialogar em “Crioulo ou Balanta”, as línguas matrizes daquela região, ela desenvolve um método de comunicação peculiar.
Logo os problemas locais e as guerras contra os Tugas (Exército de guerrilha portuguesa) consumiam a energia de todos e dizimava a população, muitas crianças perderam os seus pais e ficavam aprisionadas no MAQUI (Campo avançado de luta armada na divisa entre Senegal e Guiné Bissau) e quando esta notícia chegou ao seus ouvidos, rapidamente ela se pôs a disposição de ensinar e acolher.
Thereza pediu diretamente ao então recém-eleito presidente Luiz Cabral que mesmo em contradição decidiu liberar, mediante que ela aprendesse a manejar armas, ela aceitou!
Nos intervalos de cada aula, ela aprendeu sobre autodefesa e a manejar a metralhadora AK45 e seguiu reintegrando estas crianças e jovens à sociedade.
Em MAQUI, ela sobreviveu durante três meses, aos ataques dos Tugas (Exército de guerrilha portuguesa) que alvejavam os campos e logo viu seus alunos partirem para a cidade de Conakri na Guiné, onde eles se afastariam dos horrores da guerra.

Obra Africana enviada de presente por Thereza Santos a Família Guedes — Acervo Arnaldo Guedes.

Neste momento, Thereza retorna a Terenga, a fim de seguir com seus projetos mas a realidade estava distorcida, logo as doenças começam a invadir e a levar ao desespero, Thereza se vê de frente com a situação precária do país, onde qualquer doença é tratada com banho, compressas de álcool e aspirina.
Em menos de duas semanas, doze crianças adoecem, cinco delas morreram, entre elas Charles Cabral (sobrinho de Amilcar Cabral) e Paulinho, um menino que Thereza cuidava com esmero.
Não existia possibilidade de um exame, pois não existiam laboratórios na região, nos musseques (Aldeias africanas) ninguém havia contraído nenhuma doença e isto demonstrava que algo estava errado na escola, devido a precariedade do local ela nunca soube o que levou os alunos a morte, mas isto a abalou, principalmente ao ver a dor de dois pilares (Fátima e Iva Cabral).
A tristeza não lhe consome, lhe fortalece e dois meses depois, ela prepara os alunos para a Festa da Independência no Futa Jalom, uma montanha mística que divide Senegal e Guiné Bissau e eles viajam por mais de 10 dias ida e volta, contornando os dois países e fugindo das milhares de minas terrestres espalhadas pelas estradas.
O retorno é marcado pelo adeus emocionado de Thereza às crianças de Teranga. Logo ela embarca em um Helicóptero para a capital Bissau, em Guiné Bissau, onde o Ministro Adelino Manoquida (Ministério da Juventude e Desportos) lhe dá carta branca e ela se torna Diretora de Teatro do Comissariado.
Ali ela vira a chave e abre a Escola de Teatro de Bissau, onde apresenta as peças “Milô” que conta a a história de luta de Guiné e a peça “Luta e Liberdade”,também se torna produtora e cenotécnica nos shows de Miriam Makeba no país e conquista prestígio nestas trocas culturais. Criando laços de afinidade jamais esquecidos.
Em destaque, recebe um belo convite para ir para Angola, mas adoecida e com uma anemia profunda, ela é internada e obrigada a ser operada no país em um dos piores momentos de sua vida e no qual fica a beira da morte, após 6 dias e ainda em recuperação ela embarca para Lisboa em Portugal e na sequência viaja para Angola.
No voo ela é recepcionada pelo Camarada Pedro Pacavira, embaixador de Angola no qual facilita o seu embarque para o seu país, a levando como convidada e sem a necessidade de passaporte.
Em 24 de Janeiro de 1976, Thereza chega a Luanda e assume o Ministério de Educação e Cultura, a convite de Garcia Bires e José Eduardo dos Santos e no dia seguinte é recepcionada por Romão da Silva, então Prefeito de Luanda.
Thereza estava exausta da viagem e repleta de fome em construir, alicerçar e logo fora se aclimatar na recém independente Angola que estava totalmente devastada.
Mas as lembranças da terra natal voltaram e desta vez em poesia ao encontrar o Poeta Antônio Jacinto do Amaral Martins, ela se conecta a Terra da Garoa e aos amigos do Teatro e recorda do poema “Monangamba” (Filho de um carregador).

Naquela roça que não tem chuva
é o suor do meu rosto que rega as plantações;
Trecho do Poema: Monangamba de Antônio Jacinto

Enquanto o coração aperta, a criatividade transborda e Thereza se torna responsável pelos espetáculos comemorativos da O.M.A. (Organização da Mulher Angolana), nomeada para a Comissão Interministerial de Implantação de Núcleos Socioculturais, Diretora do Departamento de Assuntos Culturais no Ministério da Educação e Cultura, abre a Escola de Teatro de Luanda e é Nomeada diretora da Escola de Teatro,chefia a delegação artística da República Popular de Angola ao II Festival de Artes Negras na Nigéria, produz shows, peças de Teatro e sofreu um duro golpe, fora presa.
Após sofrer discriminação em uma organização de um evento por não ser Angolana, a malunga se revoltou e logo comunicou Antônio Jacinto que estava decidida a voltar para o Brasil, ele relutou e dias depois ao invés de ser levada para o aeroporto, ela fora conduzida para a Prisão São Paulo e longos quinze dias de greve de fome, agressões físicas e verbais até que ela entendeu o objetivo do jogo: Ela deveria ficar no país.
Então foi vivendo e aprendendo a jogar e logo a enviaram sem documentos para Roma (ITA), deportada para Lisboa (Portugal) e depois Rio de Janeiro, neste mesmo voo, ela encontra o então Presidente José Eduardo dos Santos que se envergonha ao vê-la.
Despedaçada, sem documentos, com poucas roupas, ela vai para casa, para fugir da mídia que explora de forma negativa seu retorno.
Depois de dias no Rio de Janeiro, ela embarca rumo a São Paulo, hora de continuar a sua trajetória.
Ao chegar com apoio de amigos, ela vai parar no mercado publicitário e coloca diversos negros em destaque, sempre com engajamento e coragem ela reinicia seus contatos e conhece o então Jovem Ismael Ivo, no qual se torna seu aliado, afilhado e amigo.

Juntos retomam a cena teatral com a peça “E agora falamos nós” no Teatro

Eduardo de Oliveira e Oliveira — Acervo digital

Ruth Escobar e prestam uma homenagem ao amigo Eduardo de Oliveira e Oliveira (in memorian).

Este ato a faz olhar com carinho para o seu passado e recordar os bons tempos do Morro de Mangueira, logo Thereza que constrói um belo legado no samba paulista contribuindo com diversas agremiações do Carnaval Paulistano.
Em destaque, ela participa ativamente do departamento cultural da Escola de samba Mocidade Alegre onde apresenta três enredos: 1980 — Embaixada de Sonho e de Bamba, 1981 — Vissungo, Canto de Riqueza e 1982 — Malungos Guerreiros Negros.

Ao Lado de Raul Diniz, cria o enredo “Caixa de Água”, mais conhecido como “Águas Cristalinas” na Unidos do Peruche entre outras passagens na história da escola, ajuda a construir enredos fantásticos e comissões honrosas no Camisa Verde e Branco, auxilia na primeira conquista da X9 Paulistana e contribui e muito na criação do enredo “Kizomba, Festa da Raça” da Unidos de Vila Isabel em 1988, além de atuar em diversas agremiações de grupos distintos, ela contribui na fundação da Amespbeesp e participa ativamente de várias atividades culturais na UESP (União das Escolas de Samba Paulistana), sendo condecorada como Cidadã Paulistana em 1992.

Convite para recebimento do Título de Cidadã Paulistana a Sra. Thereza Santos — acervo digital

Especialista na cultura africana, ela abre caminho para que o nosso país tenha melhores relações com empresários e majoritários dos países africanos, promovendo festas e jantares e incentivando a cultura.
E Thereza construiu bases ao lado de Sueli Carneiro, Edna Rolan, Nazareth Monteiro, Sonia de Oliveira e muitas outras mulheres em prol da democracia e de seus direitos.

E Falando sobre estes direitos?
É que neste momento, sentado no silêncio do meu quarto eu fico pensando, ao ver o quanto Thereza lutou, brigou, sofreu, e como sofreu. Thereza representou dezenas, centenas, milhares de mulheres, Thereza foi mil mulheres dentro de uma só.
E me fez navegar, mergulhar e refletir, como se lá distante eu ouvisse a sua voz me dizendo assim…

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Coral Angolano Unasc — Humbiumbi

Agora amanhece mais um dia de sol na Capital fluminense, assim como os pássaros que repousam sobre o leito da Baía de Guanabara, eu fiquei preso observando a tranquilidade das águas que começavam a espelhar mais uma missão, mais uma grande aventura pelo caminho.
Fechei os olhos e imaginei os traçados tortuosos da Escadaria Selarón e seus infinitos azulejos coloridos, abro os olhos e me vejo em frente ao Bar do Mineiro, peço dois copos d’água um para mim e outro para meu amigo Ismael, vejo o sorriso das pessoas e recordo quantas vezes esse trajeto eu fiz, pensando que um dia os céus, os astros iriam abrir os meus caminhos.
Observo a particularidade das casas e suas estruturas, que remetem a um passado bem distante, ouço o atrito do ferro nos trilhos e vejo mais um bonde “Dois Irmãos” chegando, me sento no entroncamento da Rua Alm. Alexandrino e respiro, sinto o perfume de eucalipto no ar.
A fumaça dos cigarros e os gritos das crianças descendo a ladeira atrás da bola, me trazem de volta a realidade.
A Tarde cai e não quero partir, mas preciso voltar para o meu Lar, mesmo com os pedidos do meu Querido Ismael para que eu vá jantar com ele no hotel onde estava, eu preciso voltar, amanhã a gente se encontra,amigo. Amanhã vamos passear ou almoçar em alguma praia, amanhã você vem me buscar, amanhã a gente se vê, amanhã…

No dia seguinte, 19 de Dezembro de 2012, pela manhã Ismael Ivo mantém o contato com o Lar no qual ela residia e durante a madrugada veio a falecer a atriz e ativista Thereza Santos.
No dia 04 de Fevereiro de 2021, se inicia os primeiros contatos, para em conjunto com o Coreógrafo e Bailarino Ismael Ivo pudesse construir este trabalho.
No dia 09 de Abril de 2021,após inúmeros contatos, faleceu o amigo Bailarino e Coreógrafo Ismael Ivo, vítima de Covid -19, um dia antes ele recebeu o primeiro capítulo e não conseguiu ler.
Em memória de Thereza Santos e Ismael Ivo.

Assim como o Humbiumbi, eles subiram aos céus para anunciar o nascer de um novo dia, a chegada de boas sementes e convidar os outros pássaros neste plano a voar cada vez mais alto e apreciar o universo.
Gratidão!

Arte Conceitual em homenagem a Thereza Santos e ao Bailarino Ismael Ivo — Crédito: Zé Nivio Gaspar.

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Diney Isidoro

Colunista,Escritor,Jornalista,Pesquisador, Sambista e um bocado de coisas na vida.